- E, uma vez tomada a decisão, quis voltar imediatamente. PRECISAVA voltar, antes que fosse tarde demais e estivesse completamente tomado pela cidade, isso seria um caminho sem volta. João Antônio estava dizendo basta à esse suor do mal, à esse caos, esse cinza. Precisava sair daquele torpor, voltar para o ar fresco, emergir. Não agüentava mais o maldito 498 de cada dia e seus trancos descadeirantes, não agüentava mais as prostitutas, nem o cigarro. Nem o penteado, nem as roupas que vestia e o cheiro que cheirava. Imaginava que teria envelhecido 10 anos em 2, sentia que as rugas haviam cavado pela sua pele seca, sentia a fuligem no suor, sentia uma sujeira que não se tira com banho; e era isso que ele levaria de volta, sujeira.
Foi só o tempo de arrumar as malas e já estava partindo. Despediu-se apenas de uma pessoa: o cachorro da casa. Dois dias depois, João estava saltando na rodoviária de sua cidade. Não avisou a ninguém que estaria voltando, apenas voltou. Foi bem recebido, matou a saudade dos amigos e familiares e por conta disso, passou quase um mês inteiro em reencontros, celebrações e reuniões. Todas esses encontros fizeram com que se parecesse um pouco como um ex-cativo em processo de re-socialização, mas, mais uma vez, não importava, já estava sentindo-se bem melhor, pelo menos. Agora iria arrumar um trabalho e tudo ficaria perfeito. Aceitaria pouca coisa, sabia que estivera fora por quase 2 anos e além de estar com o peso em alta e o vigor em baixa, ficara também, fora do ‘mercado’ tempo demais e, trabalho, pra trabalhar em fazenda, só se consegue com indicação só.
Mas o problema era justamente esse: João não estava conseguindo trabalho. Tirava um dinheiro aqui e ali, mas só e pelo menos e mal, dava para pagar o que comia. Vivendo de favor na casa de primos, a situação já estava ficando chata.
Num certo domingo, João saiu cedo de moto até a cidade vizinha, para participar de um rodeio que se inscrevera com antecedência. Desde que voltara do Rio, e isso já tinha bem uns 7 meses, ainda não competira em torneios, mas estivera treinando, com um boi bravo do primo. O primo que não lhe falou nada para não incentivá-lo demais, achou que João, inexplicavelmente, retornara montando melhor do que quando foi.
No domingo do torneio, estava um dia bonito, o céu bem azul, sem uma nuvem, sol das 11 horas. A temperatura não era necessariamente quente, mas o sol já estava queimando. Enquanto isso, João Antônio estava prestes a fazer sua corrida e por isso estava concentrado: teria 3 chances em 3 dias, para fazer o melhor tempo e pontuação. Precisava uma única tentativa que desse certo. Ele estava, mais uma vez, dando-se a chance de ser o que pensava que poderia ser. Esta seria a última, se falhasse, contentaria-se em ser um peão de fazenda e nunca mais tocaria no assunto. Mesmo com esses pensamentos, João sentia-se tranqüilo, com o coração batendo forte, mas confiante, estranhamente confiante.
Assim que montou no touro, abriram a grade; segurou-se com força na tira de couro, e o touro largou em disparada, com rodopios, sacolejando, coiceando, levantando poeira e jogando seu chapéu longe. Em câmera-lenta, João sentia os solavancos e o sol quente e viu aquele monte de gente na platéia; sua mão direita estava firme na correia embora o touro pulasse como um louco. João sentiu-se completamente familiar com aquela situação e à vontade. Não sabia porque, mas ele talvez tivesse voltado mais selvagem da cidade. Enquanto seu corpo era sacudido em todas as direções, João mantinha-se firme e lembrou-se da Avenida Brasil e do 498. A arena era quase a mesma e a situação, muito parecida. Agora ele sabia, que sobrevivera ao Rio e ao 498 mantido apenas pelo braço, fora garçom, recebera muitas ordens, tentara suportar e equilibrar as exigências de outros, tantos outros. O ônibus que vai desvairado pela Avenida Brasil tem muitos cavalos de potência, por que ele não seria capaz de resistir a apenas um touro? Sentiu-se realmente capaz de sair de lá, campeão do torneio. 2 e 500, na hora, na mão. E fôlego para tentar manter-se no topo.
Esses pensamentos tomaram 8 segundos na cabeça de João, que no 9º segundo, foi atirado ao chão com violência. Caiu de lado, com o ombro do braço que já fraturara e meio de cabeça também. O touro já estava atrás dos palhaços e duas pessoas entraram correndo na arena para socorrê-lo, mas antes que pudessem chegar até ele, João levantou-se e acenou, não havia sofrido nada.
A platéia gritava, 9 segundos é um ótimo tempo e João Antônio vibrava. Os juízes dão notas para a ‘agressividade’ do touro e para a atuação do peão. Ao final do torneio, que durou 3 dias, aconteceu que sim, João Antônio foi o grande campeão e revelação, notícia do jornal local. E depois desse torneio, de muitos outros também, João Antônio foi campeão; despontou, cresceu, foi vitorioso, destaque por muitos anos. Virou um ícone do movimento Sertanejo no Brasil, comparecia ao Faustão regularmente, ficou rico, escreveu livros, deu palestras, workshops, vendeu rações para cachorros, cavalos e peixes, botas e cintos de couro.
Nos seus livros, ele extrai lições de sua vida de sucesso; nas palestras, conta sobre sua trajetória, sua persistência e ensina à empresários que o mundo dos negócios é como equilibrar-se num touro bravo, onde o touro é o mercado e os trabalhadores são as amarras de couro.
João Antônio, atualmente, adora o Rio, mas apenas como turista, tanto é que ainda mora no interior de São Paulo e passa férias no Pantanal. Viaja de avião, anda de carro com motorista e ar-condicionado, tudo acolchoado, mas não se esquece das poltronas duras do 498. Porque foi no arredio 498 que João Antônio domava todos os dias, que ganhou resistência e aprendeu absorver os impactos do caminho. No esforço para manter-se em seu lugar, todos os dias pela Brasil, tornara-se casca-grossa, experiente, malandro.
quinta-feira, 20 de março de 2008
segunda-feira, 17 de março de 2008
João Antônio I (em 2 partes)
- João Antônio era nascido e criado no interior São Paulo; trabalhava numa fazenda e ganhava uma grana razoável para ralar das 6h às 16h. Trabalhava para se sustentar, por que o que queria mesmo era ser peão de rodeio. Só que, o que costumava ganhar com pequenos prêmios em competições não era suficiente para viver, além de ser um bocado inconstante. A verdade é que João Antônio não era exatamente o melhor dos peões.
Foi ao chão depois da queda e quebrou o braço esquerdo. Sem condições de trabalhar, tum!, foi demitido. Ia ter que ficar uns 4 meses sem poder montar num cavalo. Desanimado e sem perspectiva, vendeu seu Gol 96 e veio para o Rio de Janeiro. Entrou numa nóia de que já estava na hora de tirar essa idéia de ser peão da cabeça, virar adulto, trabalhar sério, toda aquela pressão. Aí, se largou pra cá pro Rio, na esperança de que algo acontecesse por aqui. Esperava algo que mudasse sua vida, sabia que teria mais chances de descobrir sua real vocação, numa cidade grande. No Rio de Janeiro, seus dons seriam valorizados, teria uma chance. Tinha dinheiro para começar uma faculdade, talvez; arrumaria um emprego, conheceria pessoas, poderia fazer um curso, sabe-se lá!
Ficou na casa de um antigo amigo no antigo bairro da Penha. A princípio era temporário, mas não encontrou nada mais acessível e no final das contas, seria melhor para os dois. A amizade entre eles não era como antes, mas tampouco deram-se mal e foi ficando.
Se o aluguel era barato, é certo que cobraria seu preço de outra maneira: a Penha é um bairro pesado. Mesmo para um interiorano acostumado a rodar nas ruas de São Paulo, a Penha é difícil de engolir: é industrial, cinza e quente. Extremamente barulhenta e com gigantes-caminhões-dobrando-esquinas-apertadas-de- mão-dupla; João Antônio sentia-se num ambiente hostil.
Tem as praias e toda aquela beleza do Rio, é claro, a alguns consideráveis quilômetros, é verdade; mas João Antônio não tinha interesse de qualquer jeito. Apesar do Rio de Janeiro ser um dos grandes centros mais verdes do mundo, aquilo era pouco para João Antônio. Parecia esmola dada aos pobres.
Vocês também podem achá-lo viadinho ou o que for, mas ele sentia falta da sua vida rural, de montar, do ar fresco, desde que chegara. Para quem passava a maior parte do tempo no lombo de um cavalo do que na poltrona de um veículo, a Penha era longe de tudo! E a Avenida Brasil, a via crucis diária.
Uma das mais importantes vias do Rio de Janeiro, liga a zona norte, onde morava, à zona sul, onde trabalhava. Logo que chegou, arrumou um emprego de garçom, num bar em Laranjeiras. De sua casa até o trabalho, levava normalmente 1 hora na ida e uns 50 minutos na volta. Minutos de um calor de muitos graus, multiplicado pelo asfalto quente. Em compensação, o trânsito nesse horário não é dos piores e o ônibus também, não vai tão cheio, porque trabalhava de garçom no turno da tarde.
Pista livre, horizonte tremulando laranja, sol e poeira; é a arena perfeita para ônibus desenfreados rosnarem seus motores, correndo a velocidades extremas, com curvas dilacerantes. Além, é claro dos solavancos selvagens: 498, é como se chama e Penha - Cosme-Velho, é seu trajeto. Um robusto amontoado de metal e pouca espuma nas poltronas. Entre freadas, arrancadas e buracos de todo diâmetro e profundidade, manter-se como fosse, era realmente uma proeza.
João Antônio estava no Rio há coisa de 10 meses apenas, mas já fora completamente engolido pela cidade e seus tentáculos: mendigos, asfalto, fios de alta tensão, tiros, tensão, prostitutas, tesão, noitadas, pombos, bebidas. Já tinha conhecido muitas ruas e muitas garotas pelo caminho, já comprara algumas roupas, já fumava uns cigarros, - coisas de cidade grande -. Jamais imaginara-se freqüentando aqueles lugares, fazendo esse tipo de coisas, mas a cidade o levava àquilo. Sentia-se assustado com a rudeza dos caminhões que passavam, fazendo tremer seu quartinho e com o barulho das pessoas para lá e para cá; as luzes ofuscantes das traçantes e a cidade dos traficantes.
Havia uma certa áurea de caos na cidade que lhe perturbava. Uma certa sensação de permissividade que despertou um lado seu pouco explorado, e o calor...! Ninguém ali lhe conhecia ou o veria novamente, e era tanta gente que ele tinha a sensação de ser impossível distinguir um indivíduo do outro. O Rio de Janeiro lhe dava vontade de chutar o balde.
Viveu como num turbilhão, girando, girando e as coisas passando mais rápido do que se pode registrar. Via-se sentado no bar e não sabia porquê. Não havia o menor sentido naquilo! Via-se com mulheres, queimando suas economias, mas nada podia fazer. Era como se estivesse hipnotizado, em transe, mas às vezes tivesse lapsos de consciência em que conseguia se olhar de fora, sem forças, no entanto para interferir nos fatos, era mais forte que ele.
Gastou cada centavo de suas poupanças ao longo do tempo que ficou aqui e não tinha nada. O trabalho estava insuportável e sem futuro, morria de saudades da fazenda e do trabalho ao ar livre. Estava resistindo há, quase 2 anos já, bravamente ou covardemente, não sabia, não importava mais.
Decidiu que queria voltar, aliás, agora tinha certeza. Esse pensamento já o rodeava quase que desde recém-chegado, mas agora o atacara definitivamente. Ou simplesmente o resto do seu orgulho se esvaíra, também não importava: voltaria para sua cidade! De cabeça baixa, com menos do que fora, mas pelo menos voltaria. Seria sempre bem recebido; aquela seria sempre a sua cidade; o acolheria com o abraço de uma mãe e, embora ficasse um pouco envergonhado por estar fugindo, isso tampouco importava! Manter o seu orgulho diante dos outros já estava ficando caro demais.
E, uma vez tomada a decisão, quis voltar imediatamente... >>continua.
Foi ao chão depois da queda e quebrou o braço esquerdo. Sem condições de trabalhar, tum!, foi demitido. Ia ter que ficar uns 4 meses sem poder montar num cavalo. Desanimado e sem perspectiva, vendeu seu Gol 96 e veio para o Rio de Janeiro. Entrou numa nóia de que já estava na hora de tirar essa idéia de ser peão da cabeça, virar adulto, trabalhar sério, toda aquela pressão. Aí, se largou pra cá pro Rio, na esperança de que algo acontecesse por aqui. Esperava algo que mudasse sua vida, sabia que teria mais chances de descobrir sua real vocação, numa cidade grande. No Rio de Janeiro, seus dons seriam valorizados, teria uma chance. Tinha dinheiro para começar uma faculdade, talvez; arrumaria um emprego, conheceria pessoas, poderia fazer um curso, sabe-se lá!
Ficou na casa de um antigo amigo no antigo bairro da Penha. A princípio era temporário, mas não encontrou nada mais acessível e no final das contas, seria melhor para os dois. A amizade entre eles não era como antes, mas tampouco deram-se mal e foi ficando.
Se o aluguel era barato, é certo que cobraria seu preço de outra maneira: a Penha é um bairro pesado. Mesmo para um interiorano acostumado a rodar nas ruas de São Paulo, a Penha é difícil de engolir: é industrial, cinza e quente. Extremamente barulhenta e com gigantes-caminhões-dobrando-esquinas-apertadas-de- mão-dupla; João Antônio sentia-se num ambiente hostil.
Tem as praias e toda aquela beleza do Rio, é claro, a alguns consideráveis quilômetros, é verdade; mas João Antônio não tinha interesse de qualquer jeito. Apesar do Rio de Janeiro ser um dos grandes centros mais verdes do mundo, aquilo era pouco para João Antônio. Parecia esmola dada aos pobres.
Vocês também podem achá-lo viadinho ou o que for, mas ele sentia falta da sua vida rural, de montar, do ar fresco, desde que chegara. Para quem passava a maior parte do tempo no lombo de um cavalo do que na poltrona de um veículo, a Penha era longe de tudo! E a Avenida Brasil, a via crucis diária.
Uma das mais importantes vias do Rio de Janeiro, liga a zona norte, onde morava, à zona sul, onde trabalhava. Logo que chegou, arrumou um emprego de garçom, num bar em Laranjeiras. De sua casa até o trabalho, levava normalmente 1 hora na ida e uns 50 minutos na volta. Minutos de um calor de muitos graus, multiplicado pelo asfalto quente. Em compensação, o trânsito nesse horário não é dos piores e o ônibus também, não vai tão cheio, porque trabalhava de garçom no turno da tarde.
Pista livre, horizonte tremulando laranja, sol e poeira; é a arena perfeita para ônibus desenfreados rosnarem seus motores, correndo a velocidades extremas, com curvas dilacerantes. Além, é claro dos solavancos selvagens: 498, é como se chama e Penha - Cosme-Velho, é seu trajeto. Um robusto amontoado de metal e pouca espuma nas poltronas. Entre freadas, arrancadas e buracos de todo diâmetro e profundidade, manter-se como fosse, era realmente uma proeza.
João Antônio estava no Rio há coisa de 10 meses apenas, mas já fora completamente engolido pela cidade e seus tentáculos: mendigos, asfalto, fios de alta tensão, tiros, tensão, prostitutas, tesão, noitadas, pombos, bebidas. Já tinha conhecido muitas ruas e muitas garotas pelo caminho, já comprara algumas roupas, já fumava uns cigarros, - coisas de cidade grande -. Jamais imaginara-se freqüentando aqueles lugares, fazendo esse tipo de coisas, mas a cidade o levava àquilo. Sentia-se assustado com a rudeza dos caminhões que passavam, fazendo tremer seu quartinho e com o barulho das pessoas para lá e para cá; as luzes ofuscantes das traçantes e a cidade dos traficantes.
Havia uma certa áurea de caos na cidade que lhe perturbava. Uma certa sensação de permissividade que despertou um lado seu pouco explorado, e o calor...! Ninguém ali lhe conhecia ou o veria novamente, e era tanta gente que ele tinha a sensação de ser impossível distinguir um indivíduo do outro. O Rio de Janeiro lhe dava vontade de chutar o balde.
Viveu como num turbilhão, girando, girando e as coisas passando mais rápido do que se pode registrar. Via-se sentado no bar e não sabia porquê. Não havia o menor sentido naquilo! Via-se com mulheres, queimando suas economias, mas nada podia fazer. Era como se estivesse hipnotizado, em transe, mas às vezes tivesse lapsos de consciência em que conseguia se olhar de fora, sem forças, no entanto para interferir nos fatos, era mais forte que ele.
Gastou cada centavo de suas poupanças ao longo do tempo que ficou aqui e não tinha nada. O trabalho estava insuportável e sem futuro, morria de saudades da fazenda e do trabalho ao ar livre. Estava resistindo há, quase 2 anos já, bravamente ou covardemente, não sabia, não importava mais.
Decidiu que queria voltar, aliás, agora tinha certeza. Esse pensamento já o rodeava quase que desde recém-chegado, mas agora o atacara definitivamente. Ou simplesmente o resto do seu orgulho se esvaíra, também não importava: voltaria para sua cidade! De cabeça baixa, com menos do que fora, mas pelo menos voltaria. Seria sempre bem recebido; aquela seria sempre a sua cidade; o acolheria com o abraço de uma mãe e, embora ficasse um pouco envergonhado por estar fugindo, isso tampouco importava! Manter o seu orgulho diante dos outros já estava ficando caro demais.
E, uma vez tomada a decisão, quis voltar imediatamente... >>continua.
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