sábado, 29 de dezembro de 2007

Uma estória de Guilherme

Acordou sabendo de uma coisa: era 4ª-feira. E cedo o suficiente para que pudesse levar tempo ao se arrumar. O cenário para variar era favorável aos seu sentimentos; parecia que a natureza também respeitava o acontecimento.

Não era sempre que se sentia assim, logicamente, mas era sempre às quartas-feiras. Hoje, após o almoço, irá para a casa de sua ex-mulher, buscar a filha. A menina tem 12 anos, fruto de um relacionamento que terminou há 5 e durou 22.

Reencontrar sua ex-companheira sempre foi doloroso para Guilherme, desde o primeiro dia que ficaram separados, nunca deixara de ser. Acontece porém, que alguns dias ele acordava um pouco mais vulnerável. É isso.

Enquanto enche o copo com leite gelado, procura com os olhos o cinzeiro. Não lembra-se da última vez que o usou, mas hoje ele iria fumar. Já passara a noite inteira sonhando com ela, aquele cigarro, seria um tributo: à ela!, maravilhosa.

Ela, que anos antes o havia dado motivos suficientes para que parasse de fumar, talvez nem fosse entender seu gesto, se soubesse; o que torna tudo mais doloroso e digno de mais um cigarro. Bianca certamente ficaria desapontada de saber que ele havia cedido ao vício depois de tanto tempo sem fumar. O acharia um fraco. Ignoraria completamente o fato de que ela, somente ela é seu ponto fraco.

O tempo de enrolar o cigarro é preenchido com notícias do jornal na televisão da cozinha e pedaços de sonhos que repentinamente voltam na memória. Quando a fumaça de mais de 10 anos colocando-a para dentro dos pulmões e da cabeça, volta à tona com os primeiros tragos e o vento frio entra da rua pela janela, ele sabe que ainda a ama. Depois talvez esqueça-se novamente, mas naqueles momentos, ele a ama com muita força.

O gosto da fumaça na boca, é de tabaco com essência de lima-limão, no entanto para Guilherme, cada trago lhe vem com o gosto azedo, pelo que não aconteceu e doce da saudade. Exatamente como a lima-limão.

Levanta-se, cigarro no canto da boca, andar lento, atravessa o corredor. Última porta à esquerda e está de volta ao seu quarto, ainda escuro e se põe em preparativos para começar o dia. Cenho franzido, movimentos preguiçosos e até doídos da noite mal dormida. Em um certo momento, irritado com a escuridão do quarto, teve que ceder de si mesmo e abrir a veneziana. Guilherme não queria, iria machucar os olhos, fazer frio e principalmente, já colocava-o em contanto com o mundo lá fora. Ainda era cedo, sentia-se um pássaro que acabou de sair do ovo, queria curtir sua segurança mais um pouco.

Nesse mesmo instante, com três longos puxões na correia da veneziana, escancarou-a, fazendo entrar uma grande luminosidade branca e fresca. Os olhos de Guilherme fecharam-se novamente, mas quando os reabriu, estava revigorado! O dia estava lindo, com um grande céu cinza escuro, clareando conforme amanhecia no horizonte. Gostou da sensação, do ar novo que enchia seus pulmões e encarou o dia com confiança. E desde então, ficou decidido que abriria a veneziana mesmo quando não quisesse, afinal, não é melhor ser alegre que ser triste?

terça-feira, 18 de dezembro de 2007















BICICLETA

se a roda gira,
eu rio
e num descuido
escorrego//

o carro sai,
desvio
sinal vermelho,
perigo//

olha o buraco!
sinistro...,
e o cachorro
latindo//

passa a menina
sorrindo,
e o perfume
pelo caminho//

o chafariz,
a poça d'água,
passa a velhinha,
fica a bengala//

cuidado
pombo!
foi por um triz
o tombo//

eu vou
eu vôo
a roda gira,
eu morro//

se vou chegar
duvido!
não é certo
meu destino//

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Uma estória de Luciana

-Vou almoçar, disse Luciana.

Em seguida pegou sua bolsa, tirou o I-pod do carregador, retocou o batom. Deu uma passada no toilette, borrifou um perfume, vestiu o terninho e os óculos escuros. Agora estava pronta para encarar as ruas.

Enquanto desce os 17 andares de elevador, escolhe uma música para ouvir e olha as unhas; penteia as sombrancelhas com os dedos, respira fundo, se concentra e... - tim! -, térreo.

Do elevador até a porta automática do gigante edifício, são apenas alguns passos. O pequeno trecho é percorrido com o vigor e a segurança d'aqueles que sabem exatamente de onde vieram e para onde vão. Junto à Luciana, caminham mais umas 13 ou 14 pessoas, vindas de diversas salas do prédio. Como um pequeno enxame de abelhas operárias, o grupo, que é formado por empresários, administradores, advogados e burocratas de modo geral, move-se e faz tudo fria e enérgicamente.

A porta principal se abre e o grupo se desfaz em pequenos grupinhos que tomam direções diferentes. A luz quente e forte da rua não tem pena e castiga a todos. Luciana, - apesar das grandes lentes escuras dos óculos -, quase cerra os olhos, acostumados a luz fria do escritório. Mesmo assim, segue a passos largos e rápidos o caminho que sabe de cor, aparentemente descontraída e dando pouca atenção ao que se passa à volta. Toma a direção do restaurante de todos os dias e até lá, deve atravessar um par de ruas e dobrar a esquina.

Defensora Pública por opção, Luciana sempre quis fazer algo para melhorar o mundo em que vive e foi essa a maneira que encontrou. Todos os dias ela ouve e estuda relatos de gente humilde, pobre e miserável que se queixa disso ou daquilo. Casos loucos, estranhos. A maioria envolve pensão, paternidade e herança, até aí, normal; inclusive entre as classes mais altas. A diferença é que quem pede a pensão, é a prostituta que apaixonou-se pelo último cliente; a paternidade, quem reivindica é o travesti; e o ítem mais valioso da herança é uma dentadura.

Os depoimentos que está acostumada a ler, são como peças de ficção, de um mundo que ela não conhece e não faz questão de conhecer, a não ser como literatura. A rua é apenas o meio entre o escritório e o restaurante e, não fosse por isso, talvez nem saísse de sua sala. Sendo assim, a travessia diária torna-se um tormento, uma vez que as pessoas que vivem na sua mesa como meros personagens, agora estão ali, em carne e osso. Muito mais osso do que carne, os fantasmas são reais.

Para proteger-se deles, Luciana faz uso de vários artifícios. O terninho que veste ao sair, apesar do calor, se justifica como uma proteção dos olhares daqueles homens que palitam os dentes nos botecos. Não que Luciana seja um exemplo de recato e elegância, apenas que aquele decote não é para eles. Os fones brancos abafam os gritos dos ambulantes que vendem coisas de 5ª categoria e o reforço extra no perfume, ajuda a amenizar eventuais cheiros desagradáveis que ela venha a sentir no percurso. Os óculos escuros protegem do sol, quente e real demais para seus olhos, e o salto-alto, ah!, esse é porque, com aquele chão, ela quer o mínimo contato.

A atitude, de caminhar rápida e vigorosamente, além de encurtar o tempo da travessia escritório-restaurante, serve para dar-lhe um ar compatível com as roupas que veste, ou seja, de quem sempre está a fazer algo muito importante e não apenas vagando como a maioria d'aquelas pessoas. Ela tem um objetivo, sabe como chegar lá e é isso que vai fazer. Assim foi em toda a sua vida:

- Nada me veio fácil, eu sempre corri atrás do que quis e é isso que me diferencia dessas pessoas.

Esse é o mantra que Luciana canta em sua cabeça, para sentir-se melhor, enquanto observa com asco mal contido o cotoco de perna de um rapaz na marquise:

- Fica difícil abrir o apetite desse jeito!