segunda-feira, 28 de abril de 2008

O Bote














Logo após a ventania veio a chuva, forte, fria e pesada, assustadora de verdade. O vento em popa inflava as velas e o mar se agitava; as ondas faziam o barco inclinar em ângulos perigosos e a nobre tripulação esforçava-se em manter-se a bordo, baixar as velas e controlar a embarcação.

A pequena Caravela era corajosa e enfrentava as ondas com decisão. O mar estava completamente revolto, grandes ondas agora formavam-se em várias direções, a chuva castigava.

É dever das Embarcações Reais, que querem gozar de honra e prestígio, serem capazes de transportar seus tripulantes com segurança e precisão ao comando das velas. As Embarcações Reais são imponentes e por onde passam arrancam suspiros e pensamentos aventureiros por parte dos marinheiros.

A Caravela em questão não é das maiores, já navega com meia dúzia de homens, mas é bela e elegante. A viagem é curta e a tempestade, inesperada: além da tripulação e seus pertences, a Caravela puxa atrás de si, à reboque, um bote, para 11, 12, pessoas no máximo. O Bote, de madeira grossa e esbranquiçada do sal e do sol, ao contrário, não recebe nenhuma atenção dos homens nesse momento de perigo. As ondas lhe acertam de todos os lados enquanto é puxado com trancos secos que fazem o cabo estalar. Parte da tripulação assume os remos, alguns ainda terminam de lidar com as velas, a Caravela enche o peito e segue em frente.

Entre os Botes, porém, também existe Beleza, e Este bote em particular era dos mais Belos. Os Botes Verdadeiros são aqueles que sabem-se botes, amam-se botes e desempenham seu papel da melhor maneira possível.

Botes não têm mastro para serem autônomos, tampouco leme para escolher direção. Para os Botes Verdadeiros, obediência e fidelidade à nobre tripulação, devem estar acima de sua própria existência, tal é a dedicação.

Se agora Ele estava em segundo plano, sabe que chegará a oportunidade em que será vital, será a embarcação principal. Os navegantes precisariam dele. Essa hora se dá quando, uma vez ancorados próximo à praia, ele desempenha seu papel de Barco-de-apoio e é responsável pelo transporte terra-mar.

Os bons Barcos-de-apoio são valorosos na sua função e a exercem com alegria, é o que ensinam os mais velhos. Quando estão sendo apenas rebocados, não devem chamar a atenção ou dar trabalho, porém quando a Embarcação Real ancora, ele sim, navega. A nobre tripulação deve ficar protegida e a salvo em sua concavidade; esse é o trabalho dos Barcos-de-apoio.

Aos olhos dos que vivem nas superfícies, talvez os Botes lhe pareçam menos bravos ou honrados que as Caravelas ou Veleiros, mas isso é porque desconhecem que no Reino do Mar existe a Harmonia das sábias Águas Profundas. O destino final de toda e cada embarcação, o Fundo do Mar, a companhia dos peixes, as águas tranqüilas. A Honra máxima que um Barco pode ter: afundar com dignidade, tendo navegado uma vida plena e desistido nunca.

E era contra a morte que todos ali, agora lutavam. Os esforços de ambas embarcações, no entanto, não são para salvar suas existências, mas a de sua nobre tripulação. A chuva estava grossa que machucava as costas e os homens a bordo remavam com toda força graças ao frio que anestesiava as mãos que se esfolavam. Os pingos caíam gelados e as ondas agora já tinham 4, 5 metros.

Enquanto isso, sem que qualquer perceba, o Bote, atrás de todos, estava rapidamente enchendo-se de água da chuva e principalmente das ondas que aos poucos acumulavam-se no seu fundo. Ninguém parecia notar que ele esforçava-se para resvalar da melhor maneira que podia, sem muito sucesso, e engolia mais um grande gole de onda salgada. De sua parte, também não quis falar nada; era preciso que os homens cuidassem da Caravela, - pensou -, já havia problemas demais para que ele apresentasse mais um.

Por alguns momentos a quantidade de água que se acumulava no fundo, permaneceu estável, apesar de a cada mergulho encher-se mais um pouco, para então esvaziar-se novamente o mesmo pouco. Quando uma seqüência terrível de ondas por pouco não fez virar a Caravela, foi o suficiente para encher o Bote mais do que ele conseguia esvaziar em tão pouco tempo. Apenas então, um dos marinheiros notou o que estava acontecendo e abandonou o remo entre escorregões e muita água, para tentar puxar o Bote pelo cabo, porém já era tarde demais. Em 3 longos segundos desapareceu suavemente sob as ondas, mas como estava amarrado, ficou com parte da proa visível e passou a funcionar como âncora para os homens que tentavam a todo custo tirar a Caravela da tempestade.

Então, sem pestanejar, o marinheiro correu para uma cabine lateral e voltou com um facão. O cabo era grosso, mas de tão esticado que estava, foi fácil cortá-lo em 2 vezes.

O Bote naufragara e a Caravela já manobrava no sentido contrário das nuvens escuras. Ainda empinava e inclinava, sacudia, mas a tempestade já não era a mesma e tampouco os tripulantes. Haviam perdido o Bote, que entregara-se ao Mar como quem entrega-se aos braços da mãe e então tudo acalmou-se.

Ainda chovia, e o vento assobiava por entre os cabos e os cabelos.

45 metros abaixo do nível do mar o silêncio era total, quando o Bote, descendo lentamente como uma folha seca que cai do galho, atingiu o fundo e tombou de lado, fez um baque surdo e levantou uma nuvem de areia cintilante. Logo depois aterrissou a ponta do cabo e tudo continuou como era antes.

domingo, 6 de abril de 2008

Telegrama ou SMS















Olá!

Aqui, mta correria, vc td bem??

Eu, saudades suas, vc tb??

Agora mta chuva, fecha a janela, hein!?

e lembra q eu te amo mais hj, do q amava ontem!!

quinta-feira, 20 de março de 2008

João Antônio II (em 2 partes)

- E, uma vez tomada a decisão, quis voltar imediatamente. PRECISAVA voltar, antes que fosse tarde demais e estivesse completamente tomado pela cidade, isso seria um caminho sem volta. João Antônio estava dizendo basta à esse suor do mal, à esse caos, esse cinza. Precisava sair daquele torpor, voltar para o ar fresco, emergir. Não agüentava mais o maldito 498 de cada dia e seus trancos descadeirantes, não agüentava mais as prostitutas, nem o cigarro. Nem o penteado, nem as roupas que vestia e o cheiro que cheirava. Imaginava que teria envelhecido 10 anos em 2, sentia que as rugas haviam cavado pela sua pele seca, sentia a fuligem no suor, sentia uma sujeira que não se tira com banho; e era isso que ele levaria de volta, sujeira.

Foi só o tempo de arrumar as malas e já estava partindo. Despediu-se apenas de uma pessoa: o cachorro da casa. Dois dias depois, João estava saltando na rodoviária de sua cidade. Não avisou a ninguém que estaria voltando, apenas voltou. Foi bem recebido, matou a saudade dos amigos e familiares e por conta disso, passou quase um mês inteiro em reencontros, celebrações e reuniões. Todas esses encontros fizeram com que se parecesse um pouco como um ex-cativo em processo de re-socialização, mas, mais uma vez, não importava, já estava sentindo-se bem melhor, pelo menos. Agora iria arrumar um trabalho e tudo ficaria perfeito. Aceitaria pouca coisa, sabia que estivera fora por quase 2 anos e além de estar com o peso em alta e o vigor em baixa, ficara também, fora do ‘mercado’ tempo demais e, trabalho, pra trabalhar em fazenda, só se consegue com indicação só.

Mas o problema era justamente esse: João não estava conseguindo trabalho. Tirava um dinheiro aqui e ali, mas só e pelo menos e mal, dava para pagar o que comia. Vivendo de favor na casa de primos, a situação já estava ficando chata.

Num certo domingo, João saiu cedo de moto até a cidade vizinha, para participar de um rodeio que se inscrevera com antecedência. Desde que voltara do Rio, e isso já tinha bem uns 7 meses, ainda não competira em torneios, mas estivera treinando, com um boi bravo do primo. O primo que não lhe falou nada para não incentivá-lo demais, achou que João, inexplicavelmente, retornara montando melhor do que quando foi.

No domingo do torneio, estava um dia bonito, o céu bem azul, sem uma nuvem, sol das 11 horas. A temperatura não era necessariamente quente, mas o sol já estava queimando. Enquanto isso, João Antônio estava prestes a fazer sua corrida e por isso estava concentrado: teria 3 chances em 3 dias, para fazer o melhor tempo e pontuação. Precisava uma única tentativa que desse certo. Ele estava, mais uma vez, dando-se a chance de ser o que pensava que poderia ser. Esta seria a última, se falhasse, contentaria-se em ser um peão de fazenda e nunca mais tocaria no assunto. Mesmo com esses pensamentos, João sentia-se tranqüilo, com o coração batendo forte, mas confiante, estranhamente confiante.

Assim que montou no touro, abriram a grade; segurou-se com força na tira de couro, e o touro largou em disparada, com rodopios, sacolejando, coiceando, levantando poeira e jogando seu chapéu longe. Em câmera-lenta, João sentia os solavancos e o sol quente e viu aquele monte de gente na platéia; sua mão direita estava firme na correia embora o touro pulasse como um louco. João sentiu-se completamente familiar com aquela situação e à vontade. Não sabia porque, mas ele talvez tivesse voltado mais selvagem da cidade. Enquanto seu corpo era sacudido em todas as direções, João mantinha-se firme e lembrou-se da Avenida Brasil e do 498. A arena era quase a mesma e a situação, muito parecida. Agora ele sabia, que sobrevivera ao Rio e ao 498 mantido apenas pelo braço, fora garçom, recebera muitas ordens, tentara suportar e equilibrar as exigências de outros, tantos outros. O ônibus que vai desvairado pela Avenida Brasil tem muitos cavalos de potência, por que ele não seria capaz de resistir a apenas um touro? Sentiu-se realmente capaz de sair de lá, campeão do torneio. 2 e 500, na hora, na mão. E fôlego para tentar manter-se no topo.

Esses pensamentos tomaram 8 segundos na cabeça de João, que no 9º segundo, foi atirado ao chão com violência. Caiu de lado, com o ombro do braço que já fraturara e meio de cabeça também. O touro já estava atrás dos palhaços e duas pessoas entraram correndo na arena para socorrê-lo, mas antes que pudessem chegar até ele, João levantou-se e acenou, não havia sofrido nada.

A platéia gritava, 9 segundos é um ótimo tempo e João Antônio vibrava. Os juízes dão notas para a ‘agressividade’ do touro e para a atuação do peão. Ao final do torneio, que durou 3 dias, aconteceu que sim, João Antônio foi o grande campeão e revelação, notícia do jornal local. E depois desse torneio, de muitos outros também, João Antônio foi campeão; despontou, cresceu, foi vitorioso, destaque por muitos anos. Virou um ícone do movimento Sertanejo no Brasil, comparecia ao Faustão regularmente, ficou rico, escreveu livros, deu palestras, workshops, vendeu rações para cachorros, cavalos e peixes, botas e cintos de couro.

Nos seus livros, ele extrai lições de sua vida de sucesso; nas palestras, conta sobre sua trajetória, sua persistência e ensina à empresários que o mundo dos negócios é como equilibrar-se num touro bravo, onde o touro é o mercado e os trabalhadores são as amarras de couro.

João Antônio, atualmente, adora o Rio, mas apenas como turista, tanto é que ainda mora no interior de São Paulo e passa férias no Pantanal. Viaja de avião, anda de carro com motorista e ar-condicionado, tudo acolchoado, mas não se esquece das poltronas duras do 498. Porque foi no arredio 498 que João Antônio domava todos os dias, que ganhou resistência e aprendeu absorver os impactos do caminho. No esforço para manter-se em seu lugar, todos os dias pela Brasil, tornara-se casca-grossa, experiente, malandro.

segunda-feira, 17 de março de 2008

João Antônio I (em 2 partes)

- João Antônio era nascido e criado no interior São Paulo; trabalhava numa fazenda e ganhava uma grana razoável para ralar das 6h às 16h. Trabalhava para se sustentar, por que o que queria mesmo era ser peão de rodeio. Só que, o que costumava ganhar com pequenos prêmios em competições não era suficiente para viver, além de ser um bocado inconstante. A verdade é que João Antônio não era exatamente o melhor dos peões.

Foi ao chão depois da queda e quebrou o braço esquerdo. Sem condições de trabalhar, tum!, foi demitido. Ia ter que ficar uns 4 meses sem poder montar num cavalo. Desanimado e sem perspectiva, vendeu seu Gol 96 e veio para o Rio de Janeiro. Entrou numa nóia de que já estava na hora de tirar essa idéia de ser peão da cabeça, virar adulto, trabalhar sério, toda aquela pressão. Aí, se largou pra cá pro Rio, na esperança de que algo acontecesse por aqui. Esperava algo que mudasse sua vida, sabia que teria mais chances de descobrir sua real vocação, numa cidade grande. No Rio de Janeiro, seus dons seriam valorizados, teria uma chance. Tinha dinheiro para começar uma faculdade, talvez; arrumaria um emprego, conheceria pessoas, poderia fazer um curso, sabe-se lá!

Ficou na casa de um antigo amigo no antigo bairro da Penha. A princípio era temporário, mas não encontrou nada mais acessível e no final das contas, seria melhor para os dois. A amizade entre eles não era como antes, mas tampouco deram-se mal e foi ficando.

Se o aluguel era barato, é certo que cobraria seu preço de outra maneira: a Penha é um bairro pesado. Mesmo para um interiorano acostumado a rodar nas ruas de São Paulo, a Penha é difícil de engolir: é industrial, cinza e quente. Extremamente barulhenta e com gigantes-caminhões-dobrando-esquinas-apertadas-de- mão-dupla; João Antônio sentia-se num ambiente hostil.

Tem as praias e toda aquela beleza do Rio, é claro, a alguns consideráveis quilômetros, é verdade; mas João Antônio não tinha interesse de qualquer jeito. Apesar do Rio de Janeiro ser um dos grandes centros mais verdes do mundo, aquilo era pouco para João Antônio. Parecia esmola dada aos pobres.

Vocês também podem achá-lo viadinho ou o que for, mas ele sentia falta da sua vida rural, de montar, do ar fresco, desde que chegara. Para quem passava a maior parte do tempo no lombo de um cavalo do que na poltrona de um veículo, a Penha era longe de tudo! E a Avenida Brasil, a via crucis diária.

Uma das mais importantes vias do Rio de Janeiro, liga a zona norte, onde morava, à zona sul, onde trabalhava. Logo que chegou, arrumou um emprego de garçom, num bar em Laranjeiras. De sua casa até o trabalho, levava normalmente 1 hora na ida e uns 50 minutos na volta. Minutos de um calor de muitos graus, multiplicado pelo asfalto quente. Em compensação, o trânsito nesse horário não é dos piores e o ônibus também, não vai tão cheio, porque trabalhava de garçom no turno da tarde.

Pista livre, horizonte tremulando laranja, sol e poeira; é a arena perfeita para ônibus desenfreados rosnarem seus motores, correndo a velocidades extremas, com curvas dilacerantes. Além, é claro dos solavancos selvagens: 498, é como se chama e Penha - Cosme-Velho, é seu trajeto. Um robusto amontoado de metal e pouca espuma nas poltronas. Entre freadas, arrancadas e buracos de todo diâmetro e profundidade, manter-se como fosse, era realmente uma proeza.

João Antônio estava no Rio há coisa de 10 meses apenas, mas já fora completamente engolido pela cidade e seus tentáculos: mendigos, asfalto, fios de alta tensão, tiros, tensão, prostitutas, tesão, noitadas, pombos, bebidas. Já tinha conhecido muitas ruas e muitas garotas pelo caminho, já comprara algumas roupas, já fumava uns cigarros, - coisas de cidade grande -. Jamais imaginara-se freqüentando aqueles lugares, fazendo esse tipo de coisas, mas a cidade o levava àquilo. Sentia-se assustado com a rudeza dos caminhões que passavam, fazendo tremer seu quartinho e com o barulho das pessoas para lá e para cá; as luzes ofuscantes das traçantes e a cidade dos traficantes.

Havia uma certa áurea de caos na cidade que lhe perturbava. Uma certa sensação de permissividade que despertou um lado seu pouco explorado, e o calor...! Ninguém ali lhe conhecia ou o veria novamente, e era tanta gente que ele tinha a sensação de ser impossível distinguir um indivíduo do outro. O Rio de Janeiro lhe dava vontade de chutar o balde.

Viveu como num turbilhão, girando, girando e as coisas passando mais rápido do que se pode registrar. Via-se sentado no bar e não sabia porquê. Não havia o menor sentido naquilo! Via-se com mulheres, queimando suas economias, mas nada podia fazer. Era como se estivesse hipnotizado, em transe, mas às vezes tivesse lapsos de consciência em que conseguia se olhar de fora, sem forças, no entanto para interferir nos fatos, era mais forte que ele.

Gastou cada centavo de suas poupanças ao longo do tempo que ficou aqui e não tinha nada. O trabalho estava insuportável e sem futuro, morria de saudades da fazenda e do trabalho ao ar livre. Estava resistindo há, quase 2 anos já, bravamente ou covardemente, não sabia, não importava mais.

Decidiu que queria voltar, aliás, agora tinha certeza. Esse pensamento já o rodeava quase que desde recém-chegado, mas agora o atacara definitivamente. Ou simplesmente o resto do seu orgulho se esvaíra, também não importava: voltaria para sua cidade! De cabeça baixa, com menos do que fora, mas pelo menos voltaria. Seria sempre bem recebido; aquela seria sempre a sua cidade; o acolheria com o abraço de uma mãe e, embora ficasse um pouco envergonhado por estar fugindo, isso tampouco importava! Manter o seu orgulho diante dos outros já estava ficando caro demais.

E, uma vez tomada a decisão, quis voltar imediatamente... >>continua.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

O Mendigo
















Solitário anda o Mendigo, caminhando sem companhia; o que possui traz consigo, assim vive o dia-a-dia//

Triste vem o Cachorro, lambendo suas feridas, tremendo de uma pata, chora e ninguém liga//

Ruas perpendiculares, se encontram na esquina; o Cachorro usa o faro, o Mendigo lhe acaricia//

O rabo entre as pernas, olhar ressabiado; tantos já lhe chutaram, por tantos foste ignorado//

- Cuidado Seu Cachorro, com essa gente apressada! Eles não olham para baixo e pisam em sua pata//

- Também já fui pisado, mas hoje não reclamo; aprendi de um jeito nada fácil, a ser menos leviano//

- Vivo com humildade, uma coisa de cada vez; o mundo é grande realmente, em um dia não se fez//

E o Mendigo, que casa e comida já tivera ao preço de uma coleira, hoje é rico de uma outra maneira//

Porque tudo o que possui é aquilo que carrega, e isso não é muito, quase não pesa//

Não lhe doem as costas, não resmunga da vida; de enxaqueca não sofre, a noite é bem dormida//

Não guarda rancores, não carrega dilemas; no seu céu à noite, não lhe faltam estrelas//

E quando o sol nasce, é um novo dia, mochila nas costas, café na padaria//

Andando por aí, como lhe apraz; isso é felicidade que dinheiro nenhum traz//

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Uma estória de Jussara

Por volta das 18 horas, a temperatura cai e a avenida enche-se de som e luzes, começam os happy-hours. Os jovens e outros nem tanto, afrouxam a gravata, dobram as mangas, abrem as blusas; as jovens e outras nem tanto, soltam os cabelos, antes em coques e rabos e retocam o batom. Desce uma, desce duas, desce três, o clima é agradável, a música tá bombando, a galera animada.

Pelas calçadas da avenida, os bares fervilham e logo surgem os molequinhos que vendem chicletes, cigarros, ou desafiam para um jogo-da-velha. Jussara começou vendendo Bolin-Bola, Trident e Ping-Pong, durante o dia, mas hoje ela faz 15 anos e estréia no ramo dos amendoins. Ganhou a autorização de sua mãe para trabalhar à noite, coisa que até então, apenas seu irmão mais velho fazia. A tão esperada promoção! Não é todo dia que se faz 15 anos.

A velha, mas eficiente estratégia de marketing, ela conhece de cor: primeiro passa nas mesas para deixar um punhado de amostra-grátis. Depois da última mesa, volta à primeira para oferecer o produto, 3 por 5.

Jussara veio de longe. Trouxe numa grande bolsa os cones que a mãe prepara e mais um pote cheio para comer ao longo da noite e enganar a fome até voltar para casa. De mesa em mesa, de bar em bar, oferece, recolhe, vende, come. Seu irmão, agora engraxa sapatos, assim levanta uma graninha melhor e também dá um tempo no amendoim, que não agüentava mais comer. Mas Jussara adora e acha que nunca vai enjoar, sem contar que faz tempo que reclamava o direito de trabalhar a noite, porque ‘já não era mais criança’.

A noite passa e Jussara trabalha desenvolta nas ruas e concentrada na atividade. Entre uma venda e outra, um e outro bocado, um rapaz na mesa 8 compra 3 e lhe paga 10, ela dá o troco, ele recusa, ela insiste mas ele lhe oferece uma bebida:

-Tem álcool?

- Só um pouquinho, mas é gostoso, de morango.

Ela bebe de golinho, até que é bom mesmo, nem dava pra sentir o gosto etílico. Jussara não costuma beber apesar de já ter experimentado, menos ainda na companhia de estranhos, mas hoje é uma data especial e ela se permite esse benefício. O rapaz também é bem apessoado e o lugar, público. Ao final agradece e se retira. Ele havia sido simpático, mas sua mãe sempre lhe prevenira sobre os perigos de trabalhar na rua; a senhora se deu conta da mulata de sorriso grande e olhos amendoados que tinha em casa, desde cedo.

A noite transcorre numa boa, Jussara está feliz e sente-se muito à vontade na tarefa. Depois de vender quase tudo e com a movimentação nos bares já bastante reduzida, organiza-se para pegar o ônibus na Central e voltar para casa. Abre um cone que não foi vendido para comer, porque seu pote de extras acabou. Quando vê, o rapaz da 8 ainda está lá. Ele lhe sorri e sinaliza. Não compra mais nenhum amendoim, mas oferece outra bebida. Ela hesita mas aceita, estava com a boca seca. Desta vez, de abacaxi.

- Quem diria que meu aniversário de 15 anos seria assim! – pensa Jussara, - Com drinks-chics-de-guarda-chuvinha, sentada na mesa como um deles, ao lado de um rapaz bem vestido e cheiroso!

Sente-se uma mulher, dessas que ela vê na companhia de caras como esses; branca, de cabelos longos, pele macia e grandes bolsas a tiracolo. Sente-se bem, linda, adulta, sente-se feliz, de riso solto, de corpo mole. Está falante, extasiada, vê a cidade linda, toda iluminada. Sente uma tontura agradável, as cores destacadas, os sons não tão claros. Sente uma mão em seus ombros, mexendo em seus cabelos, seus olhos fechando, a mão dele em suas pernas, um tesão indescritível; o motor de um carro, um silêncio quente. Não abre os olhos, mas desperta e sente-se cansada, relaxada e ao fundo ouve uma trilha sonora, até que uma grande lufada de ar frio a faz despertar definitivamente do transe. Era ele empurrando a porta do carro com o braço por cima dela, no assento do carona:

- Central, chegamos.

São altas horas da madrugada, o que aconteceu?

Sente o corpo dolorido, as roupas amassadas, sente dor de cabeça, foi o álcool, foi o amendoim. Já foi.