quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Uma estória de Luciana

-Vou almoçar, disse Luciana.

Em seguida pegou sua bolsa, tirou o I-pod do carregador, retocou o batom. Deu uma passada no toilette, borrifou um perfume, vestiu o terninho e os óculos escuros. Agora estava pronta para encarar as ruas.

Enquanto desce os 17 andares de elevador, escolhe uma música para ouvir e olha as unhas; penteia as sombrancelhas com os dedos, respira fundo, se concentra e... - tim! -, térreo.

Do elevador até a porta automática do gigante edifício, são apenas alguns passos. O pequeno trecho é percorrido com o vigor e a segurança d'aqueles que sabem exatamente de onde vieram e para onde vão. Junto à Luciana, caminham mais umas 13 ou 14 pessoas, vindas de diversas salas do prédio. Como um pequeno enxame de abelhas operárias, o grupo, que é formado por empresários, administradores, advogados e burocratas de modo geral, move-se e faz tudo fria e enérgicamente.

A porta principal se abre e o grupo se desfaz em pequenos grupinhos que tomam direções diferentes. A luz quente e forte da rua não tem pena e castiga a todos. Luciana, - apesar das grandes lentes escuras dos óculos -, quase cerra os olhos, acostumados a luz fria do escritório. Mesmo assim, segue a passos largos e rápidos o caminho que sabe de cor, aparentemente descontraída e dando pouca atenção ao que se passa à volta. Toma a direção do restaurante de todos os dias e até lá, deve atravessar um par de ruas e dobrar a esquina.

Defensora Pública por opção, Luciana sempre quis fazer algo para melhorar o mundo em que vive e foi essa a maneira que encontrou. Todos os dias ela ouve e estuda relatos de gente humilde, pobre e miserável que se queixa disso ou daquilo. Casos loucos, estranhos. A maioria envolve pensão, paternidade e herança, até aí, normal; inclusive entre as classes mais altas. A diferença é que quem pede a pensão, é a prostituta que apaixonou-se pelo último cliente; a paternidade, quem reivindica é o travesti; e o ítem mais valioso da herança é uma dentadura.

Os depoimentos que está acostumada a ler, são como peças de ficção, de um mundo que ela não conhece e não faz questão de conhecer, a não ser como literatura. A rua é apenas o meio entre o escritório e o restaurante e, não fosse por isso, talvez nem saísse de sua sala. Sendo assim, a travessia diária torna-se um tormento, uma vez que as pessoas que vivem na sua mesa como meros personagens, agora estão ali, em carne e osso. Muito mais osso do que carne, os fantasmas são reais.

Para proteger-se deles, Luciana faz uso de vários artifícios. O terninho que veste ao sair, apesar do calor, se justifica como uma proteção dos olhares daqueles homens que palitam os dentes nos botecos. Não que Luciana seja um exemplo de recato e elegância, apenas que aquele decote não é para eles. Os fones brancos abafam os gritos dos ambulantes que vendem coisas de 5ª categoria e o reforço extra no perfume, ajuda a amenizar eventuais cheiros desagradáveis que ela venha a sentir no percurso. Os óculos escuros protegem do sol, quente e real demais para seus olhos, e o salto-alto, ah!, esse é porque, com aquele chão, ela quer o mínimo contato.

A atitude, de caminhar rápida e vigorosamente, além de encurtar o tempo da travessia escritório-restaurante, serve para dar-lhe um ar compatível com as roupas que veste, ou seja, de quem sempre está a fazer algo muito importante e não apenas vagando como a maioria d'aquelas pessoas. Ela tem um objetivo, sabe como chegar lá e é isso que vai fazer. Assim foi em toda a sua vida:

- Nada me veio fácil, eu sempre corri atrás do que quis e é isso que me diferencia dessas pessoas.

Esse é o mantra que Luciana canta em sua cabeça, para sentir-se melhor, enquanto observa com asco mal contido o cotoco de perna de um rapaz na marquise:

- Fica difícil abrir o apetite desse jeito!

Um comentário:

André disse...

Excelente começo grande camarada! Abraço!